Josivaldo de França Pereira
Se os nossos pecados já foram
perdoados na cruz do Calvário, por que ainda pedimos perdão a Deus em nossas
orações? É preciso fazer duas distinções importantes no conceito de perdão. A
primeira tem a ver com seu aspecto jurídico; a segunda com o aspecto
relacional.
Legalmente nenhuma condenação
há para os que estão em Cristo Jesus (Rm 8.1; cf. Cl 2.13). Cristo pagou pelas
nossas culpas de uma vez por todas, satisfazendo a justiça de Deus quando foi
entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa
justificação (Rm 4.25). Desse modo, já não temos penalidade alguma a pagar pelo
pecado. Fomos completamente perdoados de todos os nossos pecados do passado,
presente e futuro (cf. Rm 8.33,34).
Sim, de uma vez! Amigo, acredita,
No Salvador tens sorte bendita!
Cristo, na cruz, a Lei satisfez
E redimiu-nos de uma vez!
(“Salvação Perfeita” - Ph. P. Bliss/S. P. Kalley)
O perdão divino inclui o
cancelamento do efeito do pecado cometido e a aceitação do pecador, a quem se
dá um novo viver juntamente com a promessa da vida eterna (cf. Cl 2.13-15; 1Jo
2.25). “Deus em Cristo vos perdoou”, diz Paulo aos efésios (Ef 4.32).
Observe, portanto, que a
doutrina bíblica que define o aspecto jurídico de perdão é a justificação,
conhecida também como justificação pela fé. O que é justificação? “Justificação
é um ato da livre graça de Deus, no qual ela perdoa todos os nossos pecados e
nos aceita como justos diante dele, somente por causa da justiça de Cristo a
nós imputada, e recebida só pela fé”.[1] Leia a exposição do apóstolo Paulo
sobre a justificação pela fé em Jesus Cristo nos textos bíblicos de Romanos
3.21-5.21 e Gálatas 2.11-21.
Todavia, por que devemos orar
pedindo perdão a Deus, visto que pela expiação de Cristo fomos imediatamente
limpos (justificados) de todo pecado? Passemos, então, ao segundo aspecto do
perdão divino: o relacional. “É verdade que a base de nosso perdão diário tem
sido estabelecida de uma vez por todas por meio da expiação feita por Cristo.
Não é necessário acrescentar nada e não se pode adicionar nada a isso. Mas esta
limpeza total e objetiva necessita aplicação diária pela simples razão de que
pecamos a cada dia".[2]
Se no sentido legal Deus é o
Juiz que nos absolve dos nossos pecados por conta do sacrifício expiatório de
Jesus Cristo, no relacional ele é nosso Pai e nós os seus filhos. Na relação
Pai-filhos constantemente pecamos contra ele, desobedecendo-o e transgredindo
sua lei (Tg 2.10,11). Contudo, João declara: “Se confessarmos os nossos pecados
ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a
injustiça” (1Jo 1.9). Ao comentar essa passagem, John Stott destaca que na
primeira frase pecado é um débito que Deus quita, e na segunda uma mancha que
Deus remove.[3]
Jesus ensinou: “Se perdoardes
aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se, porém,
não perdoardes aos homens [as suas ofensas], tampouco vosso Pai vos perdoará as
vossas ofensas" (Mt 6.14,15). E ainda: “Quando estiverdes orando, se
tendes alguma coisa contra alguém perdoai, para que vosso Pai celestial vos
perdoe as vossas ofensas” (Mc 11.25).
Nas passagens bíblicas
citadas acima, “Nosso Senhor não tem em mente a experiência inicial de perdão
que vivemos quando somos justificados pela fé, pois isso não conviria a uma
oração que se faz diariamente (ver Mt 6.12 com v. 14-15). Ele se refere, sim, à
relação cotidiana com Deus que precisamos ter restaurada depois de pecar
e lhe causar desagrado".[4]
E mais: “Como nossa
obediência a Deus jamais é perfeita nesta vida, continuamente dependemos do seu
perdão dos nossos pecados. A confissão dos pecados é necessária para que Deus
‘nos perdoe’ para restaurar a sua relação cotidiana conosco (ver Mt 6.12; 1Jo
9)”.[5] Segundo Louis Berkhof, esta
consciência de perdão, e de uma renovada relação filial, com frequência se
altera e obscurece por causa do pecado, e de novo se aviva e fortalece mediante
a confissão e a oração como resultado de um renovado exercício da fé.[6]
Os escribas e fariseus
costumavam dizer a Jesus que só Deus pode perdoar pecados (Mc 2.7; Lc 5.21). O
Mestre curava e perdoava pecados (Mt 9.6; Mc 2.10; Lc 5.24). E quanto a nós?
Podemos perdoar pecados? João Calvino responde: “Não que possamos perdoar a
culpa do delito e a ofensa, pois isso pertence só a Deus; porém, a remissão e
perdão que temos de fazer consiste em lançar voluntariamente do nosso coração
toda ira, ódio e desejo de vingança, e esquecer definitivamente toda injúria e
ofensa que nos tenham sido feitas sem guardar rancor algum contra ninguém”.[7]
Caso, por exemplo, ao fazer a
oração de Mateus 6.12 ainda guardamos rancor contra alguém, então pedimos que
Deus não reate conosco uma boa relação depois de pecarmos, assim como também
nos recusamos a reatar com os outros. O que não é surpreendente porque a oração
pressupõe relacionamento com um Deus pessoal.[8]
A oração de Mateus 6.12 não
deve, pois, ser entendida como “perdoa-nos as nossas dívidas porque perdoamos aos nossos devedores”
ou “perdoa-nos com base no fato que
temos perdoado aos nossos devedores”, mas: “Perdoa-nos, ó Deus, assim como
temos perdoado aos outros, por causa daquilo que tens feito por nós. Tudo
quanto te pedimos é que nos perdoes da mesma maneira; não com o mesmo grau, porquanto
tudo quanto nós fazemos é imperfeito. Por assim dizer, da mesma maneira que nos
tens perdoado, nós temos perdoado aos outros. Perdoa-nos como nós os temos
perdoado, por causa daquilo que a cruz de Jesus Cristo tem realizado em nosso
coração”.[9]
Wayne Grudem conclui: “Se
pecamos contra ele [Deus] e entristecemos o Espírito Santo (cf. Ef 4.30),
permanecendo ainda o pecado sem perdão, interrompe-se a nossa relação com Deus
(cf. Is 59.1,2). Até que o pecado seja perdoado e a relação, reatada, a oração
logicamente fica obstruída”.[10] “... Assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós”,
salienta Paulo (Cl 3.13).
Em suma, enquanto no aspecto
jurídico ou legal o perdão de Deus é concedido de uma vez por todas no ato do
arrependimento humano, no relacional o perdão de Deus para conosco faz parte de
um processo constante da vida cristã.
[1] O Breve Catecismo de Westminster,
Pergunta e Resposta 33 (cf. Rm 4.6; 5.18; 2Co 5.21; Gl 2.16; Ef 1.7). Veja
também O Catecismo de Heidelberg, Pergunta e Resposta 60.
[2] Guillermo Hendriksen, Comentário
del Nuevo Testamento: San Mateo. Grand Rapids: SLC, 1986, p. 349-350.
[3] John R. W. Stott, 1, 2 e 3João: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São
Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1991, p. 67.
[4] Wayne Grudem, Teologia
Sistemática. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 314. Itálicos do autor.
Veja também L. Berkhof, Teologia Sistemática. 7ª ed. espanhola. Grand
Rapids: SLC, 1987, p. 615-617; D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte. 2ª ed. São José dos Campos: Fiel, 2017,
p. 515-517.
[5] Grudem, p. 314.
[6] Berkhof, Teologia, p. 617; Manual de
Doutrina Cristã. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 190.
[7] As
Institutas, III, xx, 45.
[8] Cf. Grudem, p. 314; Lloyd-Jones, p.
519-521.
[9] Adaptado de Lloyd-Jones, p. 520.
[10] Grudem, p. 314.